belita

Sunday, March 02, 2014



Onde moram as estrelas
Certa vez havia uma terra muito longínqua, e estava tão longe no tempo e na distância, que nem se sabe bem se existiu.
 Mas isso não é o que mais interessa, porque o que conta mesmo é que era nessa terra que vivia o Francisco. Os seus olhos eram azuis, límpidos e transparentes e, tal como acontece com a água, os olhos do Francisco reflectiam o azul do céu. Ou seria o céu que espelhava a cor dos seus olhos, de tão azuis que eram?
A terra do Francisco era muito rica e poderosa, mas o rei da terra vizinha tinha muita inveja do rei da terra do Francisco, por isso, mesmo quem não gostava do seu rei queria ser seu ‘amigo’. Mas estas coisas o Francisco não sabia nem se preocupava, porque eram assuntos que diziam respeito mais aos adultos. E muitas vezes os pais do Francisco tinham conversas com um tom preocupado, mas como eram coisas complicadas para a sua cabeça o Francisco não as entendia e depressa as esquecia, só não gostava da irritação que provocavam nos pais. Depois dedicava-se ao que mais gostava, as brincadeiras, e  nisso, sim, era especialista.
 Nas duas terras havia um princípio que os dois reis tinham combinado respeitar, porque os dois concordavam que era o mínimo que podiam oferecer às suas populações. De acordo com esse lema e desde o dia em que nascia, toda a criança tinha direito a um nome e uma nacionalidade, ou seja, a ser cidadão de um país.
Mas na terra vizinha à do Francisco e porque o seu rei não tinha jeito para o ser e tudo que fazia era para ser superior ao rei vizinho, às vezes as coisas não corriam como deviam nem se cumpriam as leis que tinham sido estabelecidas. Ora por isso, e porque este rei já não se lembrava do tempo em que era criança e nem de como tinha gostado de o ser, ele já não pensava nas crianças da sua terra.
E num dia, em que a manhã acordou cheia de um azul que se confundia com os olhos do Francisco, os dois reis desentenderam-se e zangaram-se. Ora, a maneira como se sabe que os países estão zangados é quando há guerra entre eles.
E foi o que aconteceu. O Francisco teve, então, que fugir do seu país por causa da guerra. Mas na outra terra as pessoas que não eram de lá não eram muito bem vistas e tinham que viver à parte. E Francisco vivia muito triste, porque não entendia para que eram as guerras. Só sabia que não gostava do sítio onde agora estava e não podia ir para o seu país.
Sim, porque as guerras são incompreensíveis e, muitas vezes, nem os adultos entendem porque as há ou porque as provocam.
Francisco, durante a noite, admirava as estrelas e fascinava-o pensar na sua liberdade, na sua infinita casa, que era o céu, que de noite era negro, como o que Francisco sentia nas alturas em que estava muito triste.
Ao contemplar as estrelas Francisco pensava se nelas, as pessoas que lá viviam também tinham que andar a fugir de um lado para o outro, ou de estrela em estrela. E como as via tão calmas logo se tranquilizava e desejava, com todas as suas forças, poder um dia viver, sossegadamente, numa estrela.
Claro que Francisco não sabia que as estrelas não eram sítios onde se pudesse morar.
O que mais o encantava nas estrelas era o seu brilho diamantino e estava convencido que eram feitas de prata. E como a mãe lhe explicara que a prata era valiosa Francisco desejava ter uma estrelinha de prata. Embora reconhecesse que se calhar o sol era mais valioso, porque brilhava como o ouro, o brilho das estrelas era bem mais encantador e maravilhoso. Porque o sol às vezes era muito quente e muita gente se queixava dele e, assim, Francisco não tinha por ele grande admiração.
Francisco agora tinha uma vida errática, que quer dizer que andava sempre de um lado para o outro. Não morava só num sítio. Num país que não era o seu, nem onde se sentia bem, Francisco nunca mais se lembrara de como era ser criança, ou seja, já quase não sabia fazer o que as crianças gostam, que é brincar, correr e até admirar as estrelas.
Apesar do frio e da noite escura e do cansaço, a que o Francisco já se ia habituando de cada vez que tinha de ir para outro lado, ele adorava o céu, por causa das estrelas brilhantes e por serem calmas e maravilhosas, e, principalmente, porque a mãe sempre lhe dizia que as estrelas são as casas das pessoas que gostam de nós e que já não vivem na Terra e que do céu olham para nós e nos protegem.
Houve um dia em que Francisco e os seus pais tiveram que partir novamente. E por serem refugiados (que é o que se chama às pessoas que fogem de um país para se sentirem em segurança) tiveram que andar muito e até atravessar uma serra para chegarem a outro sítio onde pudessem demorar, morar e descansar, e lhes parecesse mais seguro.
Naquela noite as estrelas estavam todas ali, para guiarem a família do Francisco no seu difícil caminho.
Foi em mais um dos seus deambulares (que é o que costuma acontecer às pessoas que não podem viver só num sitio, na sua terra) que Francisco se perdeu de seus pais. Como todas as crianças, era muito curioso e ao apreciar tudo o que o rodeava distraiu-se e foi ficando para trás, Distanciou-se e nem se deu conta de que se estava a separar dos seus pais. E quando se viu sozinho correu muito a ver se ainda os apanhava.
Desorientado começou a andar, a andar, a andar e, sem saber,
tanto ia para a            FRENTE       
como   para TRÁS.               
Ia para a                     FRENTE     
e  para TRÁS.
Tentou acalmar-se. Parou, esperando que quando dessem pela sua falta voltassem para trás para o buscar.
Por estar tão cansado recolheu-se num buraco, que por ali apareceu.
Assustado e sem saber como resolver a situação lembrou-se das sábias e tranquilas palavras da mãe nos momentos em que ele lhe parecia preocupado e com medo. “Depois da tempestade vem a bonança” dizia ela. Era assim que a mãe lhe explicava que as coisas más não duram sempre, há sempre coisas boas que vêm a seguir. Era, neste momento, o que ele mais desejava que acontecesse e ansiosamente aguardava a ‘bonança’, palavra que ele já tinha aprendido que queria dizer “tranquilidade”, “calma”.
Foi, no entanto, surpreendido por uma tempestade e percebeu, nesta altura, que lhe fazia falta tudo o que ele gostava e conhecia (os pais, a sua casa, os seus vizinhos. Enfim, a sua terra!). Francisco tinha medo das tempestades e dos trovões principalmente, que o assustavam muito, pelo barulho que faziam. Também se perturbava demais quando havia relâmpagos e aquela luz toda (que nem os cobertores apagavam) parecia-lhe um aviso sério de que era nestas alturas que Deus ralhava com os homens.
Passou um dia, dois dias e muitos dias e Francisco continuava sozinho à espera,  muito triste e, apesar de continuarem azuis e transparentes, os seus olhos já não reflectiam o céu e não queriam ver mais, porque pensava no sofrimento, na tristeza, e na sua solidão. Francisco fechou os olhos para não ver o mundo e foi-se deixando ficar.
No entanto, sentia a sua família dentro dele. E quando a família está dentro de nós não estamos sós. Francisco fechou os olhos e sentiu a sua família dar-lhe um abraço lá por dentro. Num dia, triste, como a sua história, conseguiu finalmente descansar em paz, na sua estrela. No ‘país’ onde ele sempre imaginara que todos podiam viver e ser felizes.

(Minha autoria, a pedido de um amigo)
(pProjeto ainda não concretizado)